terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Coisa simples




Dia quente. Latidos de cachorro ao longe na rua. "Entra pra tomar banho, menino!", gritava uma voz feminina do lado de fora do muro. O chiado da água subindo para a caixa d'água. Passarinhos que voltavam para seus ninhos, enquanto o sol findava a tarde e os pernilongos começavam a se ouriçar com as luzes das lâmpadas das casas.
O portão se abre, e ela entra chegando de mais um dia de trabalho. Os filhos estão lá, a continuar suas jovens vidas que ainda estão por começar. A tarde continua caindo, e a janela começa a ficar cada vez mais escura, e o azul passa de seus tons claros para uma cor mais escura, profunda e tranquila como um lago que engole agora o horizonte por inteiro.
E enquanto as crianças brincam no quintal do lado de fora, em seu universo de fantasia, o cheiro do café que acabou de ser feito começa a sair casa afora. Hora do banho. Já meio cansados, mostram todas as lições de casa da escola feitas. Um canto de igreja soa ao longe, ecoando por dentre os muros que separam as casas, trazendo a lembrança da fé que segura toda aquela gente.
Sentados à mesa, os dois irmãos ficam a falar de coisas que os adultos em sua maioria já esqueceram. Bela é a idade da infância, quando o mundo inteiro está por se descobrir. Ao mesmo tempo o pai, que em seu trabalho artesanal em casa ao mesmo tempo os olhava para que não ficassem sem cuidados, ao mesmo tempo que os iniciava em sua arte e profissão, contando também causos de seus tempos na roça de chão batido, termina mais um trabalho que será vendido.
Dentro dessas paredes de tijolos arduamente batidos, onde cada um deles traz uma história de luta e conquista, rege uma certa harmonia invisível. Uma paz que poucos no mundo conseguem um dia usufruir. E depois de a noite terminar de vir, enquanto a janta vai sendo preparada, surge um canto que emudece os dois pequenos. Uma voz que traz ao mesmo tempo beleza de uma alma simples, e a força de alguém que vai à luta todos os dias. Uma voz que, sem acompanhamentos de instrumentos musicais, voa e ressoa na alma de quem a ouve com o próprio coração. Então, distraídos novamente por alguma outra fantasia do mundo da infância, os dois irmãos passam correndo pelos pais, enquanto lá fora o mundo continua a rodopiar.
Se alguém pudesse ver tal cena, certamente sentiria um conforto dentro de si por saber que aquilo era algo que ocorria todos os dias, com a mesma naturalidade que a luz do sol volta sempre ao amanhecer. Longe das câmeras, longe dos palcos, existindo apenas por simplesmente ser uma forma dentre tantas de se viver. Quem visse aquela cena, certamente se rendiria à contemplação e diria: é, as coisas simples são mesmo as mais belas.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Heróis



Encarar a vida como ela se apresenta não é das atitudes mais fáceis que precisamos ter. Levantar todos os dias, e simplesmente ter a coragem de sair de casa para mais um dia não é um mero ato ordinário: é um ato de heroísmo. Nem sempre paramos para pensar no quão heróica é a atitude de simplesmente levar tudo à frente.
Quando pensamos em heróis, sempre lembramos de super-poderes. Pessoas com a capacidade incrível de estar no exato momento em que se fazem necessárias. Pessoas que param os vilões e salvam o dia, nem sempre a tempo de salvar os relacionamentos em seu redor, aquele famoso caso do herói que perde a amada por não poder contar o seu segredo.
Mas a verdade é que, no fundo, apenas gostamos dos heróis não porque queríamos ser como eles. É porque eles representam o que já somos sem perceber. São um versão fantasiada do que fazemos uns pelos outros quando queremos. Porque, quando destrinchamos as histórias, vemos que que heróis salvam pessoas não porque eles podem, e sim porque eles querem estar lá. E é isso que diferencia heróis e vilões em histórias em quadrinhos. A decisão de, da forma que puderem, contribuir para o bem deste mundo.
E o mais inspirador nisso tudo é que, quando conseguimos chegar à essência do que eles todos são, vemos que tudo reside em uma capacidade que está aquém de qualquer super poder: a capacidade de se colocar no lugar do outro, e entender que o sofrimento alheio é também motivo de nossa preocupação. Saber mudar de referencial é saber enxergar o mundo de outras maneiras, e é isso que heróis fazem todos os dias. Errando algumas vezes, mas erguendo a cabeça e sabendo que, seja entrando em um prédio em chamas, ou apenas oferendo um sorriso, não é a grandeza das atitudes que conta, e sim o fato de que, ao final do dia, alguém por aí está indo dormir com a esperança de que ainda há bondade neste mundo.
E isso porque os atos de heróismo se fazem no cotidiano. Certa vez, em uma dentre várias histórias que já vi sobre super heróis, uma personagem disse algo que, mesmo hoje, ressoa como a melhor explicação do porquê heróis ainda fazem tanto sucesso entre nós:
"__ Você não hesita em entrar em um prédio em chamas, nem pular na frente de uma bala, porque esse seu corpo de aço é impenetrável. Mas se salvar a pessoa que ama significa deixar seu coração vulnerável, o homem de aço não se manifesta."
No final das contas, mesmo o mais forte de todos sucumbe frente aos mesmos medos, receios e incertezas que qualquer um de nós. E talvez justamente por isso eles nos inspirem a melhorar sempre o que somos. Para exercer uma influência boa não é necessário que possamos mais do que os outros, ou até mesmo tenhamos alcançado a perfeição. Só é preciso que aceitemos o que somos, e usemos isso para extender felicidade aos que necessitam. Quando crescemos, aprendemos que, mesmo que grandes atos sejam dignos de grands heróis, não necessariamente é preciso salvar o mundo para salvar o dia.