terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Coisa simples




Dia quente. Latidos de cachorro ao longe na rua. "Entra pra tomar banho, menino!", gritava uma voz feminina do lado de fora do muro. O chiado da água subindo para a caixa d'água. Passarinhos que voltavam para seus ninhos, enquanto o sol findava a tarde e os pernilongos começavam a se ouriçar com as luzes das lâmpadas das casas.
O portão se abre, e ela entra chegando de mais um dia de trabalho. Os filhos estão lá, a continuar suas jovens vidas que ainda estão por começar. A tarde continua caindo, e a janela começa a ficar cada vez mais escura, e o azul passa de seus tons claros para uma cor mais escura, profunda e tranquila como um lago que engole agora o horizonte por inteiro.
E enquanto as crianças brincam no quintal do lado de fora, em seu universo de fantasia, o cheiro do café que acabou de ser feito começa a sair casa afora. Hora do banho. Já meio cansados, mostram todas as lições de casa da escola feitas. Um canto de igreja soa ao longe, ecoando por dentre os muros que separam as casas, trazendo a lembrança da fé que segura toda aquela gente.
Sentados à mesa, os dois irmãos ficam a falar de coisas que os adultos em sua maioria já esqueceram. Bela é a idade da infância, quando o mundo inteiro está por se descobrir. Ao mesmo tempo o pai, que em seu trabalho artesanal em casa ao mesmo tempo os olhava para que não ficassem sem cuidados, ao mesmo tempo que os iniciava em sua arte e profissão, contando também causos de seus tempos na roça de chão batido, termina mais um trabalho que será vendido.
Dentro dessas paredes de tijolos arduamente batidos, onde cada um deles traz uma história de luta e conquista, rege uma certa harmonia invisível. Uma paz que poucos no mundo conseguem um dia usufruir. E depois de a noite terminar de vir, enquanto a janta vai sendo preparada, surge um canto que emudece os dois pequenos. Uma voz que traz ao mesmo tempo beleza de uma alma simples, e a força de alguém que vai à luta todos os dias. Uma voz que, sem acompanhamentos de instrumentos musicais, voa e ressoa na alma de quem a ouve com o próprio coração. Então, distraídos novamente por alguma outra fantasia do mundo da infância, os dois irmãos passam correndo pelos pais, enquanto lá fora o mundo continua a rodopiar.
Se alguém pudesse ver tal cena, certamente sentiria um conforto dentro de si por saber que aquilo era algo que ocorria todos os dias, com a mesma naturalidade que a luz do sol volta sempre ao amanhecer. Longe das câmeras, longe dos palcos, existindo apenas por simplesmente ser uma forma dentre tantas de se viver. Quem visse aquela cena, certamente se rendiria à contemplação e diria: é, as coisas simples são mesmo as mais belas.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Heróis



Encarar a vida como ela se apresenta não é das atitudes mais fáceis que precisamos ter. Levantar todos os dias, e simplesmente ter a coragem de sair de casa para mais um dia não é um mero ato ordinário: é um ato de heroísmo. Nem sempre paramos para pensar no quão heróica é a atitude de simplesmente levar tudo à frente.
Quando pensamos em heróis, sempre lembramos de super-poderes. Pessoas com a capacidade incrível de estar no exato momento em que se fazem necessárias. Pessoas que param os vilões e salvam o dia, nem sempre a tempo de salvar os relacionamentos em seu redor, aquele famoso caso do herói que perde a amada por não poder contar o seu segredo.
Mas a verdade é que, no fundo, apenas gostamos dos heróis não porque queríamos ser como eles. É porque eles representam o que já somos sem perceber. São um versão fantasiada do que fazemos uns pelos outros quando queremos. Porque, quando destrinchamos as histórias, vemos que que heróis salvam pessoas não porque eles podem, e sim porque eles querem estar lá. E é isso que diferencia heróis e vilões em histórias em quadrinhos. A decisão de, da forma que puderem, contribuir para o bem deste mundo.
E o mais inspirador nisso tudo é que, quando conseguimos chegar à essência do que eles todos são, vemos que tudo reside em uma capacidade que está aquém de qualquer super poder: a capacidade de se colocar no lugar do outro, e entender que o sofrimento alheio é também motivo de nossa preocupação. Saber mudar de referencial é saber enxergar o mundo de outras maneiras, e é isso que heróis fazem todos os dias. Errando algumas vezes, mas erguendo a cabeça e sabendo que, seja entrando em um prédio em chamas, ou apenas oferendo um sorriso, não é a grandeza das atitudes que conta, e sim o fato de que, ao final do dia, alguém por aí está indo dormir com a esperança de que ainda há bondade neste mundo.
E isso porque os atos de heróismo se fazem no cotidiano. Certa vez, em uma dentre várias histórias que já vi sobre super heróis, uma personagem disse algo que, mesmo hoje, ressoa como a melhor explicação do porquê heróis ainda fazem tanto sucesso entre nós:
"__ Você não hesita em entrar em um prédio em chamas, nem pular na frente de uma bala, porque esse seu corpo de aço é impenetrável. Mas se salvar a pessoa que ama significa deixar seu coração vulnerável, o homem de aço não se manifesta."
No final das contas, mesmo o mais forte de todos sucumbe frente aos mesmos medos, receios e incertezas que qualquer um de nós. E talvez justamente por isso eles nos inspirem a melhorar sempre o que somos. Para exercer uma influência boa não é necessário que possamos mais do que os outros, ou até mesmo tenhamos alcançado a perfeição. Só é preciso que aceitemos o que somos, e usemos isso para extender felicidade aos que necessitam. Quando crescemos, aprendemos que, mesmo que grandes atos sejam dignos de grands heróis, não necessariamente é preciso salvar o mundo para salvar o dia.

sábado, 29 de novembro de 2014

Tempo

 
Invisível, implacável, imutável
Senhor da vida, da morte, faz de tudo passagem instável
Nas fotos o papel de amarelo se colore
Enquanto das montanhas para o mar
O rio da nossa vida sem parar corre

Sensível, recheado de amores, despedidas
É com acontecimentos e histórias
Que sua essência é preenchida
E desde seu início até o seu desconhecido final
Lutas serão vividas, vitórias serão adquiridas
Memórias serão construídas, e promessas serão cumpridas

Intimidador, poderoso, estranho remédio para a alma
Às vezes se faz rápido como o vento
Em outras é como o brilho do sol num mar em calma
Faz que as folhas de verde a amarelas e vermelhas venham ao chão
Faz com que a certeza se transmute em uma nova questão

Não se sabe se é testemunha ou causa das mudanças que virão
Só se sabe que sem parar suas mãos por todo lugar passarão
E enquanto bebês crescem para se tornarem fortes que amarão
Seus olhos vêem a vida como um acontecimento raro desde toda a criação

E seu prolongamento nos trás perguntas que incomodarão
Pois sabemos que para ver as respostas
Nossos olhos mais aquik não estarão
E enquanto brincamos de esquecer que nossas pegadas também se irão
Ele faz seu papel perfeito de que coisas novas sempre virão

E docemente como o abraço de um irmão
Aos recantos do desconhecido seus braços nos levarão
Deixando como certeza apenas
Que mesmo depois de nós outros tanto também se levantarão

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Aconchego



Vermelho no azul
Cores de um mesmo corpo nu
Folhas amarelas pelo chão
Dois que caminham mas têm unidas as mãos
Vento nas árvores, som de rio ao longe
Sol brincando nas nuvens
Logo logo desce abaixo do horizonte

Ruas antigas como a memória do mar
Histórias aqui vividas
Que só descobre quem aprendeu a imaginar
Calçadas de pedra, feitas com calos nas mãos
Marteladas do passado, ouço-as hoje ainda pelo chão
Ouro brilhante que aqui correu
Natureza estranha que agora nas montanhas se escondeu

E enquanto o violão toca à tardinha
Ouço uma gaita bela que lhe faz companhia
Dois que são um, um que são dois
Sons que me lembram, que amigos não se deixa para depois
Ao meu lado um velho senhor se senta
Me conta histórias antigas
Dos tempos que suas mãos eram sem rugas como as minhas

E ali fico parado a escutar
Como o tempo dá sabedoria
Àqueles que pela vida se deixam moldar
E encontram num mero bom dia a honradez de reis
Pois com um sorriso é que muito por este mundo já se fez
E mais à noite dentro da missa
Aquelas velhas senhoras em côro
"Meu Deus, que coisa mais linda!"
Penso eu enquanto sorvo toda aquela amiga realidade
E no peito já me bate aquela vontade
De tudo isso num filme eterno transformar

E ao andar de volta pela rua
No céu surge uma bela e amiga lua
Me faz lembrar das serenatas que os antigos falam
Na porta das casas daqueles a quem amavam
Quando a vida não era apenas correria
Quando em ruelas o riso de crianças de ouvia
Em memórias perdidas de uma era quase esquecida
Com saias de fita, babados a rodear
Aquelas mulatas que nos rios as roupas iam lavar

Em uma quase utópica realidade
Com todos os seus problemas e contrastes
Nasci, cresci, e aprendi uma eterna verdade
O pé no chão é também digna condição
Daqueles que bravamente lutaram para não só existir
Vencedores no final com um sorriso no rosto puderam partir
E ainda que as eras se acabem
Triunfantes poderão para semrpe existir
Pois naquelas casinhas com cheiro de lenha a queimar
Nelas foi que aprendi o que é que significa mesmo o verbo amar

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A arte de continuar



Tem dias que são assim. Você acorda, e sai da cama para fazer o mesmo que em todos os outros. Trabalho, escola, ou seja lá o que for. Naquela vivência que se vai diariamente sem fim. Mas um dia em especial fica na memória. Nele, algo sai fora do padrão, e aquilo que conhecemos se vai. Estamos ainda ali, analisando e tentando nos encaixar na nova situação, enquanto certo e errado parecem ter trocado de lugar, ou talvez sejamos apenas nós que estamos reaprendendo no quê exatamente acreditar.
Então, apesar de toda a confusão, o atordoamento, a dúvida, se arrisca um movimento adiante. Com cuidado, porque o chão destruído parece um campo bombardeado, bombas estas que vieram de sabe Deus onde, sejam pelas peças pregadas pela vida, ou por aqueles a quem talvez tenhamos dado crédito demais. E ali vamos, acreditando, embora com o receio de uma criança diante da porta do armário no quarto que está semi-aberta.
Então percebemos que, a despeito de todo o meio hostil à volta, de todas as palavras pesadas e cheias de rancor e ódio, ou apenas de falta de empatia, é exatamente o que se deve fazer. Seguir resistindo aos ataques intermitentes, que atingem não apenas o corpo, mas também a alma, dando aos nossos pensamentos e sentimentos outras formas e tons. Começamos a aprender que para amar o próximo, é preciso enxergar as nossas próprias limitações, e então entender que, ali no outro lado do campo de fogo, existe uma alma quebrantada por mil outros ataques sem razão.
E assim vamos, unidos numa jornada rumo a sermos um alguém melhor. Não simplesmente para nós mesmos, para obtermos uma posição melhor, ou qualquer outra vã projeção passageira de resplendor terreno. É rumo aos recantos perfeitos do eterno, onde meros farrapos têm o mesmo valor e beleza que vestes de ouro. No fim, tudo não passa de mera capa transitória, com o fim de nos fazermos visíveis uns aos outros, para que aprendamos a lidar com o que temos de encarar em nós mesmos.
Então passo após passo, obstáculo após obstáculo, se vai em frente. Em geral se ouve muito das margens da estrada. E com razão, porque quem não se ocupa da própria caminhada tem tempo de ser vigilante impiedoso das jornadas alheias, fiscalizando o mundo a partir de sua própria existência e referencial. Mas ao entender o multiverso de realidades que esse mundo carrega, entendemos que estas são apenas vozes perdidas, ecos passageiros que também encontrarão seu caminho. Sem medo, sem rancor, sem violência, com o tempo aprendemos a amar também a eles. Afinal, assim como nós mesmos, são apenas crianças tentando aprender a crescer.
E aí, ao passo que tudo vai se mostrando mais amplo, também vai se mostrando mais belo e, com o frio na barriga de encarar tamanha grandiosidade, vamos pegando o costume de cair, levantar e aprender. O costume de ser ferido, perdoar e se curar. Aos poucos, bem aos poucos, a gente vai internalizando esse processo eterno de tentar, algumas vezes falhar, mas nem por isso se deixar parar. No fundo, para ser feliz, não é preciso que tudo esteja perfeito, que o dia seja de verão, ou que a casa esteja cheia. Talvez o que se precise seja apenas saber que todo o bem que fizermos ecoará neste mundo por muitos anos além da nossa própria existência e, por isso, vale a pena se pôr a movimentar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Despedida



Realidade perfeita
Alegria e tristeza
Cada qual em seu lugar
Cada qual em seu momento
No riso não havia choro
Nao se fingia beleza no lamento

Aquelas linhas que escrevem
Os destinos que iremos traçar
Entram em choque com a pele desprotegida
Casa de espelhos a mostrar cada imperfeição antes escondida
Enquanto se arranca os pecados como a uma erva daninha
Alguns são algo além do esperado, são parte do que se é

E enquanto as lâminas cortam a pele
Para que o sangue sob o altar se santifique
O mundo se torna vermelho, de todas as cores a mente se esquece
Medo, revolta e também dor
Que fazem que alma e corpo um contra o outro venham a se indispôr

No silêncio das madrugadas caem lágrimas dos olhos
Que de dia são vermehos como a ferida que não se fecha
E o prédio que antes era um lar, uma segunda casa
Se torna a lembrança constante de uma jornada condenada
Almas para sempre no abismo lançadas

E dia após dia tudo aquilo faz cada vez menos sentido
Enquanto o silêncio começa a tomar conta da mente apavorada
Mesmo com todas as belas palavras há um quê de ódio em tanto amor
E tomando coragem, pés para fora se começa a pôr
Deixando como uma lembrança amada
Aquilo que sempre se deu valor

Não é que a despedida seja de mágoa
Mas a verdade se torna clara como água
Lembranças boas e o carinho sempre ali estarão
E essa é a parte mais difícil para aqueles que se vão
Ir embora sem adeus ou razão
Por no fundo se sabe que parte dali, infelizmente jamais novamente serão

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Laços eternos



Ao longo de nossas vidas, encontramos sempre diferentes lugares e, neles, diferentes pessoas. Vivemos experiências completamente únicas e que, boas ou ruins, modelam aquilo que somos, rumo a um progresso do nosso ser. Aprender é muito bom quando nos abrimos à experiência, mesmo que seja muitas vezes difícil aceitar tudo aquilo que temos de enfrentar. Seja na escola, na universidade, em casa, ou em outros âmbitos de nossas vidas, todos os dias somos confrontados com situações que nos desafiam a ir além do que somos.
Porventura chegamos ao ponto que finalizamos nossos ciclos, para que outros se iniciem. É doloroso nos despedirmos de algo ou alguém que basicamente era nosso dia-a-dia. Sejam os lugares que frequentávamos, as conversas que tínhamos com aquelas pessoas, uma hora isso tudo passa a fazer parte da nossa memória, enquanto os retratos começam a se amarelar na parede. E a saudade, ahhh a saudade vem com toda a sua força, nos levando a querermos nos ligar com o que ficou lá atrás. 
Mas a verdade é que, assim como todos os anos as estações são diferentes das mesmas do ano anterior, nossos relacionamentos mudam. Assim como em um ano o outono é mais colorido porque as folhas duram mais na copa das árvores, em outros elas são levadas todas de uma vez por ventos vindos de só Deus sabe onde.
Porém, nestes momentos somos capazes de ver com clareza não apenas quais momentos foram realmente significantes para nós, como também quais as coisas, e quais as pessoas realmente nos fizeram bem. Algumas pessoas deixam um rastro de uma tristeza, porque sabemos que aquilo que vivemos com elas não chegou nem perto do que poderia ter sido, seja pelos motivos que forem. Outras partem de repente, sem que possamos nos despedir, e deixam a sensação de vazio daquilo que não pôde ser vivido. Porém há outras com as quais foi possível viver algo tão grandioso em sua simplicidade, que tudo que podemos dizer é: fomos felizes. Mesmo na saudade que elas deixam, continuam a nos ensinar com suas palavras ressurgindo em nossas memórias, e continuam a nos alegras com suas atitudes que percebemos em nós mesmos, depois de tanto tempo de convivência. Elas não são apenas um quadro bonito que temos pendurado na parede da nossa história de vida, porque da forma mais sublime, sincera e espontânea possível nos ensinaram que, de fato, aqueles que amamos vivem para sempre dentro de nossos corações.

domingo, 28 de setembro de 2014

Dos outros


Aquela fúria tão bela
De um vulcão que em chamas jorra fogo de suas entranhas
Ventos que um cone no ar formam
Uma forma elegante, pomposa só quando em terras estranhas

Fotos belas de uma viagem pelas montanhas
Estrelas brilhantes, no espaço fazem o seu redor em chamas
Lágrimas de alegria
No final da conquista que durou uma vida

O troféu na mão do nadador
Cujas cãibras de cansaço são invisíveis para o telespectador
Um casal que ao fim da vida com uma bela família chegou
Mas cujas batalhas sofridou ninguém mais pelejou

Aquele cientista visionário que o mundo revolucionou
Mas cujas noites sem dormir ninguém mais testemunhou
Os mártires que na história para sempre estão marcados
Mas cujas penas sofridas são apenas pensamentos apagados

Do conforto da própria existência o externo é sempre desejável
Pois a pedras do caminho já foram feitas castelo inigualável
Dos horrores das noites em solidão
Restam apenas memórias, que só aqueles as têm, também as sentirão
Porque quando de longe o suficiente
Tudo parece uma fonte de águas nascentes
E mesmo a noite parecerá mais clara
Pois só quem a presencia saberá o quanto ela é solitária

sábado, 13 de setembro de 2014

Propósito


Há aproximadamente dois mils anos, uma verdadeira revolução teve começo. Não destas dos livros de história, feitas com armas e discursos inflamados. Não destas que erguem algumas pessoas acima das outras, e que juram fazer uma justiça que nunca chega. Esta foi uma revolução que começou dentro das casas, correndo de coração para coração, espalhando-se como a luz de um novo alvorecer. 
Naquele dia fatídico, houve um sinal para todos. Pois, ao contrário do que se dizia sobre merecimento, atitudes abençoadas que condenavam ou não o indivíduo, surgiu a mensagem de que, independente do que se fosse, havia um amor maior no qual cabia isso tudo. No dia em que aqueles braços foram abertos, eles não abraçaram apenas uma parcela eleita: eles abraçaram o mundo inteiro. 
Desde então, em meio aos cantos escuros, ou nas praças públicas, ou dentro dos lares, surgiram aqueles que viram a luz, e se fizeram espelho dela. O que foi mostrado é que, independente de onde se nasceu, do que dizem a seu respeito, ou do que tentam fazer com que se seja, se pode ser mais. Se nasceu para ser mais. 
Então, entregues de alma e coração, continuaram sua jornada. Quase sempre sem entrar para a história, pois ela é feita de conquistadores, que nem sempre são realmente vencedores. E hoje ainda estão por aí, mostrando para aqueles à sua volta um novo motivo para viver. Sem admoestação, sem palavras gritadas de forma agressiva, mas com a calma do exemplo diário, pois as atitudes falam muito mais do que palavras, e alcançam muito mais que os limites até aonde o som pode ir. 
Então, aprendendo a ser menos para plantar mais, se vive dia após dia. Sabendo-se que, apesar de todas as imperfeições que se tem, e de todas as coisas pelas quais o mundo te apedrejaria, há alguém que não se importa com nada disso. Alguém que se fez luz e ao mesmo tempo caminho, alguém que se fez verdade e ao mesmo tempo compreensão. Alguém que entende melhor que todos nós sobre como o mundo pode ser injusto e perverso. 
Então, sem medo e sem vergonha, a porta está aberta. Passar por ela é se entregar de novo todos os dias, avançando um pouquinho a mais, e jamais se esquecendo de levantar também aqueles que se encontra no meio do caminho. Nenhuma vitória é de fato verdadeira quando conquistada sozinho, e nenhum verdadeiro vencedor usa de sua vitória para diminuir a capacidade dos outros. Ele a guarda em seu coração, e permite que ela inspire os que ainda não têm forças para seguir sozinhos. Isso é amar, isso é viver. Questionar-se todos os dias sobre aonde é que se pode chegar, sem deixar de respeitar aquilo que se é. Pois o que sabemos é que somos obras sagradas, daquelas que não foram feitas para serem tratadas como qualquer velharia por aí. Reconhecer no outro a bondade que ele lá dentro possui não é um dom especial, isso deve ser uma atitude constante. Pois se a vida fosse feita para encontrar condenados e jogá-los aos cães, nós mesmos seríamos os primeiros da fila.
Dessa forma, assim como há dois milênios atrás encontramos braços abertos para sermos amados, devemos também tentar manter os nossos braços abertos, sem medo nos expôr aos pregos e lanças com os quais quiserem nos perfurar. Não existe personificação mais perfeita da atitude de amar, que expôr o próprio coração diante daqueles que estão à nossa frente. Alguns podem até querer nos agredir, outros irão distorcer aquilo que dissemos, mas outros, outros irão entender cada palavra, e tornarão elas em vivência, levando ainda mais além aquilo que a nós mesmos deu vida verdadeira. E por estes qualquer sacrifício vale a pena, pois uma vida tirada das sombras é motivo de alegria por toda a eternidade.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Lágrimas



Todas as manhãs acordar e sair de casa
Todas as manhãs voltar a se aventurar por esta estrada
Ruas com rostos que não conheço
Mas que julgam a felicidade que acham que não mereço

É duro ver que mesmo o mais sincero olhar
Não seja o que primeiro vêm procurar
É duro todos os dias vir a ler
Aqueles que te odeiam por qualquer coisa que você tenha vindo a ser

Não importa para onde quer que você vá
Há sempre os que julgam, os que fazem questão de te odiar
Os que furam a fila porque são mais dignos
Que não exitam em criar a alcova para seus próprios filhos

E enquanto insistem em destronar realezas mundo afora
Quem ainda tem coração apenas senta e chora
Porque ainda é muito mais fácil apontar o dedo e acusar
Que estender uma mão amiga para ajudar

E enquanto escolhem quem é digno ou não do amor
Destroem almas, e não vêem que só semeiam a dor
Sequer se perguntam se não dói ser tão odiado
Se não dói tanto ouvir que se tem o fim já traçado

Enquanto calam a voz da dita imundície
As rosas perdem suas pétalas, até os pássaros se calam em respeito
Enquanto nos céus os anjos olham
E perguntam se ainda temos jeito

Em um mundo que é tão fácil contra o outro se irar
Parece mera utopia
Alguém com quem se possa apenas conversar
Morremos um pouco mais a cada dia
Em que descobrimos que já não podemos nem amar

domingo, 7 de setembro de 2014

Independência

 
Hoje fazem 192 anos que o Brasil se tornou independente de Portugal, caracterizando-se como um Império, não obedecendo mais às ordens da coroa portuguesa. "Independência". O que exatamente essa transformação segnificou e significa para o povo? Afinal de contas, nós cidadãos somos não só a maioria da população, como também aquilo que constitui e caracteriza o país.
A princípio, para o povo, o processo de independência não significou uma tomada de autonomia para si próprio. Ainda havia lá um imperador, a dar as regras de como tudo deveria funcionar. Apesar de todas as mudanças que obviamente se seguiram, e culminaram inclusive na própria Proclamação da República, o povo ainda continuava com uma mesma forma de pensar: havia um poder centralizado em uma pessoa, e esta pessoa deveria prezar pelo bem-estar de todos. E, caso as coisas andassem mal, a culpa seria unicamente do seu trabalho mal-feito.
Essa mentalidade um tanto quanto patriarcal, tendo a figura do chefe de estado como único responsável pela vida de todos, mesmo em 192 anos de nossa existência como território independente, e não mais como colônia, parece não haver saído da mentalidade geral. Com o advento da República do Café com Leite, o Período Vargas, seguido dos períodos populista e militar, não vieram para apagar essa imagem de que o presidente é o salvador ou o algoz da pátria. Ainda hoje se escolhem líderes, sem sequer se lembrar que o país é constituído por várias esferas de poder e, principalmente, que o presidente cuida apenas do Poder Executivo, enquanto que os poderes Legislativo e Judiciário soam como meros coadjuvantes do poder.
No jargão cotidiano de que "política, futebol e religião" não se discutem, acabamos por ver essas três coisas como algo parecido, e então não sabemos separá-las. A escolha e defesa de um candidato é feita com o mesmo caráter meramente passional que de um time de futebol, e a sua defesa é feita com o mesmo ardor e fé com o qual se defende a própria religião. E, ao se tentar debater visões diferentes, saem apenas rótulos vendidos pelas esquinas, palavrões de estádios de futebol, e o outro é visto com os mesmos olhos que se olha a um condenado ao inferno. E, por fim, quando as coisas vão mal, o dito salvador é rebaixado à segunda divisão da opinião pública, e "deposto", como que a um imperador que não cumpriu seu trabalho. Surge então um novo "messias" salvador, no qual se deposita toda a fé, num ciclo de ascenção e queda, enquanto a responsabilidade pela vida no país é terceirizada, pois assim é mais fácil se encarar à noite no espelho de casa: "Estou cercado por idiotas."
Acredito que hoje, apesar de ser sim uma data importante para o país, para o povo em geral ainda é apenas uma comemoração simbólica. Enquanto o presidente for visto com os mesmos olhos que se olha a um rei, viveremos no país da "República dos Pais e Mães da Nação", no qual a época eleitoral se resume a promessas tão vazias que ultrapassam os limites da infantilização do cidadão. Enquanto o indivíduo se considerar uma mera vítima do sistema, e jogar a responsabilidade de tudo nas mãos dos outros, bem como a culpa por tudo que acontece, não poderemos verdadeiramente comemorar o dia da independência. Mudar o nome de colono para cidadão é fácil, o desafio mesmo é pensar e agir todos os dias como um.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Inverno



Andando pelo mundo
Vendo histórias, a nossa história, a história dos outros
Vi que o jardim no qual cresci não é tudo
Vi que é preciso levar rosas para tornar os corações mais puros

No campo soldados em lados opostos de uma campina
Feras que pareciam se odiar, pois eles queriam apenas se matar
Mas olhando em um lado e depois no outro
Vi crianças perdidas, olhos tristes que não conseguiam parar de chorar

Nas ruas cartazes e vozes que gritavam
Enquanto alguns outros seguiam seu rumo
Sem ligar, eles aos primeiros ignoravam
Eram as vozes dos indignos, aqueles cuja vida saiu do dito prumo

Enquanto os insultos são lançados pelo ar
E a atmosfera se carrega da fumaça negra de nossas mentes
Este é mesmo um lugar difícil de se estar
As mãos queimam ao tocar estas palavras tão ardentes

Parece que o mundo vai se fendendo aos poucos em lados
Parece que do nada e sem critério
O destino começou a jogar dados
E quer nos brincando de desvender seus mistérios

E enquanto decido se cedo ao pesar ou se continuar a viver
O tempo passa, e os dias se tornam de novo mais curtos
Sinto que os ventos gélidos querem mais uma vez voltar
E acordo então para mais uma vez sonhar com absurdos

Sem lutar contra esta natureza
Minha amiga, dentro de mim é um pouco a mais de gentileza
Sem deixar de ver ali uma chama a cultivar
Que nem mesmo o mais frio inverno será capaz de apagar

Me vem à então aquela voz a me lembrar
Que devemos ser casa
Um abrigo aberto para quem precise descansar
Então mais uma vez acendendo a lareira do meu lar
Venha cá, irmão, pois ainda tenho um pouco de verão para compartilhar

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Ser


 Há quem diga que a vida é um caminho traçado, pelo qual só nos resta atravessar, rumo ao final. Por muito tempo, acreditou-se que o indivíduo nascia com uma determinada posição, à qual deveria obedecer, seguindo adiante sem muitos questionamentos. Direito divino, punição de pecados, ou por mera falta de esforço, essa separação ainda hoje se faz ouvir pelos cantos do mundo, como se tivéssemos nascido com rótulos que nos definem em meio ao mundo que vivemos.
Não é possível negar que existem de fato condições limitantes na vida de todos nós. Seja por nossas relações pessoais, nossas condições materiais ou até mesmo limitações físicas, somos confrontados com um determinado conjunto de condições, com as quais temos de lidar todos os dias.
Mas a verdade é que, a despeito do que tudo e todos possam nos levar a acreditar, somos nós quem definimos o que seremos amanhã. Ainda que nosso hoje seja definido por atitudes do ontem, o que fazemos agora também virá a se tornar passado e, em dias futuros, terá como resultado a chegada de dias melhores. Ainda que se passe o tempo que for, é primordial ter a fé de que, apesar de todas as adversidades presentes, resistir é a única forma de vencê-las. Enquanto se espera por resultados para começar a crer em si mesmo e na vida que se pode ter, o que se viverá será um ciclo infindável de erros repetidos, decepções consigo e os outros, e um espírito que se tortura continuamente com meros fantasmas do passado.
Abrir os olhos para enxergar aquilo que podemos deixar de lado é um dos passos necessários para a libertação. Isso tira da mente a repetição diária de uma consciência furiosa que grita ensandecida, a mostrar quadros de situações que já se acabaram, nos fazendo revivê-las e sofrendo repetidamente tudo como se fosse a primeira vez. Senso de responsabilidade e compromisso por remediar erros é algo sublime, mas condenar-se pela eternidade todos os dias é um atentado contra a própria vida, pois isso nos impede de seguir adiante, como devemos seguir.
Quando conseguimos isso, podemos partir em rumo a outros sonhos, outros objetivos, outras estações. E, sempre que algo ou até mesmo alguém surgir para apontar aquilo que somos hoje, com nossas limitações e defeitos, teremos a serenidade e humildade de reconhecer: "sim, é verdade". Mas saberemos também que isso não é tudo sobre nós, nos amando em nossa própria condição, e sabendo que a vida não é feita apenas de fatos. Ela também é feita de desejos, sentimentos e sonhos.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O cultivador de estrelas


Mais que o reflexo no espelho
Mais que o concreto desejo
Além das curvas das dúvida
Muito além dos fechados bosques de criaturas mudas
Mais intenso que um sonho de madrugada
E mais atraente que as musas de antigas lendas gregas contadas

Tão suave quanto o canto de uma mãe no leito
Tão sedento quanto um bebê que ainda mama no peito
Tão sublime quanto um afresco antigo
E tão sensível quanto um poeta sem destino

Feito por mãos sábias, pertencentes ao destino
O chamado logo ali, já se ouve o badalar do sino
E uma flauta que ao longe toca
É a vida que canta, para o futuro ela se desloca

Em meio a montanhas cobertas da neve da indiferença
E vales cheios de vida, por aqueles que têm no próximo sua crença
Em rochas ásperas, maltratadas pela história
Ou em carvalhos tão velhos, que já se perdem em sua memória

Seguindo rios serpenteantes, calmos como anciãos
À sua margem seguem aqueles, que entre si se deram as mãos
O infinito é belo de se admirar
Quando o medo de si mesmo, em fogueira reluzente à noite se faz queimar

Em redor há olhos por todos os lados
Uns reluzem com mil estrelas, outros são escuros como profundos lagos
Mas em todos eles há pelo menos uma estrela
Nela se pode acreditar
Que mesmo lá no fundo do universo
Existe vida a exalar
E seja por música, silêncio, dor ou perda
Um dia essa luz irá exalar

Mãos que tateiam em busca de um pouco de alma
Mesmo quando ela atrás de muros se esconde e perde a calma
Venha cá, minha querida
Hoje quero apenas te abraçar
Venha cá, minha doce irmã
Que para você irei cantar
Me dê sua mão, alma tão bela
Que a ti mesma quero te revelar

domingo, 24 de agosto de 2014

Espetáculo


Fotos, vídeos, desafios para caridade... Noitadas, viagens, tudo do melhor e mais chique. Ou pelo menos do que parece trazer mais felicidade. Compartilhar furioso de tudo, desde que esse tudo seja o que os outros se interessem, desejam ou participaram. Uma realidade de uma dimensão só, que é a da felicidade dos momentos incríveis que se tem todos os dias.
Aquela mesa de jantar, aquele show inesquecível, aquela conquista de uma vida. E isso vai nos cansando, nos desgastando, pois no fundo sabemos que aquilo é apenas uma parte do todo. Se por um lado no incomoda ver tanta felicidade instantânea espalhada por aí, por outro podemos nos perguntar o quanto dela é de fato real. Se alguém de outra época passada viesse até o agora, provavelmente num primeiro momento ficaria estarrecido, pois como pessoas aparentemente tão felizes podem ainda ser capazes de se envolver em conflitos violentos, sejam eles de caráter civil ou militar? Mas a verdade é que com o tempo, esta pessoa veria o que realmente temos sido: uma sociedade de camadas. E a cada camada que descemos, aprofundando-nos na nossa própria realidade, vemos o quão infelizes ainda somos.
Mas não temos autorização para demonstrar isso mais. Porque o que manda é fazer parte da classe de sorrisos estampados, seja pelo motivo que for. Demonstrar como somos fortes, destemidos, guerreiros contra a intempéries da vida. Ressaltar como o EU é capaz de conquistar seus sonhos, de viver fora dessa realidade cheia de imoralidades, e de como somos corretos, e o mundo, uma fonte de miséria e azares. 
Não poderia dizer ao certo o que há de errado nisso. Talvez a questão nem seja compartilhar a felicidade que se tem. Talvez o problema seja que simplesmente não seja isso que fazemos nos dias de hoje. Hoje, nós a pegamos e a atiramos nas caras uns dos outros, como que numa competição de quem não vai mais ser invisível. Porque perdemos o princípio básico que ser feliz também está ligado diretamente a fazer os outros felizes.
Talvez o problema seja a falta de sentido nisso tudo. Em meio a tantas mídias, fotos, vídeos, textos e blogs, qual o propósito disso tudo mesmo? É estar no meio de todos os outros, ou querer se destacar como o que tem as melhores ideias, as melhores atitudes, a melhor vida em cima da realidade alheia? Talvez seja hora de lembrarmos quem realmente somos, e sermos mais sociedade, e menos espetáculo. Porque felicidade não é aquilo que se pega e joga em público pra que todos vejam que ela existe e dêem atenção a você. O nome disso é carência. Carência de sabermos que estamos todos a um inbox de distância, e ainda assim distantes como estávamos há uns 300 anos atrás.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Harmonia



Ruas estreitas de uma cidade antiga
História congelada, realidades vividas
Mãos ternas que cuidam dos jardins
Flores de todas as cores, desde margaridas até jasmins

Olhares sinceros, atenção mútua
Pássaros nas árvores, das quais surrupiam suas frutas
Enquanto nos caminhos se encontram os amantes
Furtivos e inocentes
Com a vida ainda a encher seus abraços quentes

Ah! Paixão efervescente
É brilhante como esta lua crescente
Que se enche pouco a pouco de luz
Até ser disco completo, uma esperança até o sol nascente

Ah! Música da vida
Uma orquestra infinita
Com a harmonia de sopros e cordas
Mesmo com os bárbaros e suas hordas

O mar se enche de calma
E alguns dias também de fúria
Só quem vive à beira da praia
Sabe quão grande e solitária é sua injúria
Em um ir e vir de marés que beijam a terra
E que carregam consigo os sonhos dos que nele lavam seus pés

Enquanto cortam pelos ares os motores altos e ruidosos de um avião
Que como em um piano choroso
Levam consigo a partida e o perdão
Num misto de gozo e tristeza
Da partida para o além
Mas também daquilo que fica para trás no chão

E enquanto as gaivotas choram na praia
Convidam como um violino à saudade daquilo que não se viveu
Mas que se sente tão sólido, triste e belo como o choro de uma gaita
Soprando sentimentos corpo adentro
E lembrando a alma de suas cores infinitas
Com as quais colorirá também
Os campos e vales em seu redor, trazendo os traços de um autêntico artista

sábado, 9 de agosto de 2014

Reconciliação



Logo pela manhã, após acordar, deu de cara com aquela figura descabelada no banheiro. Pálida, com um rosto e corpo magros, embora ainda jovens. Arrumou-se, e enquanto isso via aquela sombra esguia, meio sem graça, mas com um quê de charme discreto, movimentos leves e espontâneos. Perdeu um pouco de tempo a mirá-la, aquela forma humana que lhe acompanhava onde quer que fosse.
Saiu de casa, e foi ao trabalho. Lá se esqueceu de tudo. Concentrado, atendendo a ligações, executando tarefas, não havia tempo para nada. Foi almoçar, e novamente estava ela lá, presença constante, embora silenciosa por toda a manhã. Deixou-se admirá-la por alguns segundos, mas logo a chegada de um colega de trabaho tirou-lhe novamente o foco.
Mais tarde, continuou sua rotina de tarefas, até que o expediente findou-se. Saiu e, por sugestão de sua companheira inabalável, foi até a beirada da praia. Mas não parou por lá. Seguiu adiante, subindo o morro da cidade, que ficava de frente para o mar. A pedido dela, que gostava de espaço e vistas distantes, como a linha do horizonte na qual se esconde o sol.
Chegou lá, e desligou o carro. Sentiu um leve arrepio por conta da brisa do fim da tarde, enquanto os raios de sol lambiam tranquilos a sua pele. O som da água quebrando nas rochas lá embaixo era relaxante. Respirou fundo e, fechando os olhos, encontrou-a novamente. Estava ela lá, regozijando profundamente aquele momento. Sua presença, sentiu sua própria luz brilhar mais forte naquele momento. Abrindo mão de todos os problemas que tinha consigo mesmo e abraçou sua consciência, numa reconciliação natural, enquanto a paz o enchia por completo. Tomando a si mesmo nos braços, percebeu, naquele momento único sob o canto das gaivotas distantes, o quanto se amava. Então sua consciência e sua percepção de si mesmo, não mais uma voz estranha e agressiva em sua mente, voltou a ser uma só com seu espírito. O sol se despediu e terminou de se esconder no mar, findando mais um dia, enquanto as luzes da cidade começaram a se acender, e seus olhos continuavam contemplando o horizonte.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Outras versões



Face triste, olhos marejados
Decepção, grito solto pelos espinhos farpados
Entrega ao reflexo de si mesmo
Que brilha na superfícia da água do lago
Enquanto os soluços enchem a noite
A sua própria dor é o único afago

Perdão que nasce no meio da escuridão
Enquanto convertido em angústia
Seu amor jaz pelo chão
Busca por respostas infindável
Num ritmo contínuo, essa tortura interminável

Cuidado ao abrir as portas do lar
Por trás de faces ternas
Estão intenções que mal se pode imaginar
Lá fora o mundo pode dar voltar
Mas aqui dentro, tal qual em minuto eterno
Parece que o tempo para sempre parou

Dúvidas que destroem a fé no amanhã
Dúvidas que quebram os quadros belos do que foi o ontem
Tornam cada fé no porvir em cinzas, resto de uma ideia vã
E tal qual ecos em uma montanha, as palavras vêm e vão na mente
Em um diálogo horrendo consigo mesmo

Quem se é não é certeza mais
E à noite deitado na solidão
Vem o pesadelo de que não foi mesmo verdade
Por não querer crer na história dos livros da sua mente
Sonha com uma realidade diferente
Aceitando ser mesmo de tudo o vilão
Que largou o amor por quem se simplesmente era
Por amar demais quem poderia ser
Ainda que fosse o único solitário
Que este outro panorama pudesse ver

sábado, 26 de julho de 2014

A doença do estranho cômico


Passar pela infância e adolescência é algo muito bom e, ao mesmo tempo, doloroso. Na nossa sociedade, pelo menos, latina, descendente de várias raças, há sempre julgamentos para tudo. Meninos que estão afeminados demais, meninas que estão masculinizadas demais, a imposição da felicidade a dois, porque quem está sozinho não pode ser feliz, dentre outras mil coisas mais. Um exemplo muito simples disso é ir a uma festa de amigos que se dizem próximos. Se uma música começa a tocar, e alguém se atreve a dançar sem saber, é o motivo de piada do dia. Porque temos de apresentar ao menos um mínimo de "proeficiência", se não quisermos ser o bobo da corte real. 
E assim é o nosso dia-a-dia. Roupas que não podem ser estranhas demais, posturas que não podem fugir do padrão, detalhes e mais detalhes que pesam como uma carga absurda sobre nossos ombros. Nós, de tão acostumados, não nos damos conta de como é doloroso suportar isso tudo. Não, não podemos ser nós mesmos. Ou melhor, se formos, somos encaixados em algum rótulo, porque não aprendemos ainda a viver sem julgar. Rotular é dar uma marca, porque sentimos a constante necessidade de avaliar os outros ao nosso redor. Não aprendemos ainda a ver as pessoas, seja na rua, na escola, ou dentro de casa, sem querermos avaliar, a partir de mera observação instantânea, o que aquele indivíduo é. Não. Precisamos vê-lo, avaliá-lo, dizer a qual prateleira ele pertece e, se for digno o suficiente de IBOPE, vale até uma foto ou um vídeo pra espalhar na internet. Nos damos o direito de classificar até mesmo as pessoas mais próximas, porque não entendemos a verdade de que a limitação está em nós.
"Nossa, que papo de humanista filosófico chato." É, talvez. Lendo apenas este texto, talvez seja mesmo um rótulo que justo. Mas honestamente, não importa. Não é um texto avulso, em meio a um blog inteiro, que é apenas uma das atividades que um indivíduo executa, que vai definir tudo que ele é. Não muda o fato de que, independente de qualquer característica superficial que seja vista ou atribuída ao ser, o caráter, a personalidade e sua definição (se é que ela é realmente palpável ao nosso olhar limitado) vão muito além, sendo ao mesmo tempo o conjunto e seus elementos individuais. E, em se tratando de uma sociedade que se baseia em rótulos, manchetes e boatos para tomar decisões e formar suas opiniões, não é de se surpreender que a mesma seja errônea e injusta quando se trata de conviver com outras pessoas. Chega a ser engraçado e triste ver as dicas de como melhorar a beleza e a auto-estima que circulam por aí. Elas se tratam, basicamente, de melhorar a superfície a fim de agradar conhecidos e desconhecidos que encontramos no cotidiano, para não darmos motivos de sermos a piada da vez. 
Não buscamos melhorar nossa compreensão do ser humano. Sua complexidade, dinamismo e, principalmente, sua mutabilidade com o tempo. Qualquer tentativa de dar uma denominação a isso é restringidora. É por isso que nos sentimos tão incomodados com estereótipos. Por isso sentimos que eles nos diminuem. Porque eles não são capazes de retratar tudo aquilo que somos. Servem apenas como tentativa para entender o que está na nossa frente, dividindo e classificando, assim como fazemos com tudo. A gordinha, o magrelo, a machona, o viadinho, o favelado, o hipster, o chato dos direitos humanos. No fundo, nos falta o hábito de olhar o mundo e as pessoas nele como um todo. Vemos a parte mais fácil, a que nos interessa, ou a que servirá para a próxima piada do show de stand-up. O que importa é manifestar ter uma opinião, seja ela qual for. Ficar calado, se abstendo de um posicionamento avaliativo e desnecessário sobre como o outro é, é ser passivo, ignorante, desinteressado, ou como dizem por aí, aceitar qualquer coisa que o mundo oferece. Perdemos o hábito, se é que algum dia o tivemos, de buscar compreender o outro a fundo, além daquilo que é superficial. E isso talvez porque, no final das contas, nós não tenhamos vontade de olhar para dentro sequer de nós mesmos.