sexta-feira, 27 de junho de 2014

Porto



Pôr do sol à beira da praia. Canto de gaivotas chorosas ecoando pelo ar. Aquela brisa meio fria, anunciando que o dia se acaba. A areia, porém, ainda está quente, relembrando o calor do sol que a aqueceu durante o dia. E enquanto as águas se tingem de laranja, a nostalgia é tudo que se sente no ar.
Uma porta que se abre, deixando uma morada sem dono. Ou talvez ela até tenha dono, pois não se sente de todo vazia. Cada objeto, cada quadro pintado, cada detalhe que foi configurado no estilo daquele morador. Quem sabe o que o tempo irá preservar para memória do futuro? Nada como a doce e calma paciência de saber que um dia sempre vem após o outro.
Mas hoje, este exato momento, é o dia da saudade. Das lágrimas furtivas, enquanto o coração sabe que, no final das contas, tem de ser assim. As marcas das pegadas deixadas para trás são o consolo de que se despede de alguém que continuará a caminhar. De resto, são apenas cores belas pintadas numa parede branca da sala, mostrando que por ali esteve um artista.
Enquanto se dá o último abraço, se sente uma tristeza, um pequeno vazio de porquê. Mas, por outro lado, se sente um calor, um aconchego daqueles dias já idos, que consolam as lágrimas que querem vir, tal qual aqueles últimos raios de sol que teimam e brilham na penumbra do fim da tarde. E, mesmo nas noites mais amargas, cheias da solidão de estrelas frias e distantes, ainda poderá se ouvir, no sussurro do vento que carrega as folhas caídas pelo chão, o consolo que vem dos céus, em uma só frase: "Nenhum adeus é para sempre".

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Referenciais



Progredir. Avançar. Estar sempre em moviemento rumo a uma melhoria contínua de nós mesmos. Não deixar que a morosidade que este mundo oferece nos faça cair no erro do conforto, da conformidade com o suficiente que podemos oferecer, e sim buscar sempre aprimorar nossa própria visão de mundo, nossas ações perante os outros, o nosso meio e até mesmo em relação a nós mesmos.
Na física, mais especificamente na mecânica clássica, são estudados movimentos de corpos ao longo do espaço e do tempo. A rapidez com que um corpo se move é dada por sua velocidade, mas ela sozinha não é capaz de definir exatamente o que acontece com aquele corpo. É preciso saber seu deslocamento, que nada mais é que definir para onde ele está indo. Definir a direção para a qual ele se dirige, e só então, juntamente com a sua velocidade, é que podemos avaliar sua trajetória. 
Para tanto, é preciso definir algo chamado referencial. Sem ele, não há como saber para onde o corpo vai. Não importa se ele está a cem, duzentos quilômetros por hora, ou até mesmo na velocidade da luz. Se ele não estiver direcionado ao seu destino final, então ele apenas se afasta mais e mais de seus objetivos.
Assim é a vida. Não adianta apenas sabermos que estamos em movimento. Porque sem um referencial estamos apenas vagando sem rumo. É preciso ter uma base, um ponto no qual se basear, para saber para onde estamos indo. Seja ele nosso ponto de partida, ou nosso objetivo final, é preciso saber para onde nos lançamos.Não há sentido para nossa caminhada, tal qual não há sentido na trajetória de um corpo sem um ponto de referência.
Segundo a Mecânica Clássica, um corpo pode parecer mais devagar, mais rápido ou até mesmo parado dependendo do referencial que estivermos. É aquela velha história do carro na rodovia que, ao alcançar a mesma velocidade que aquele no qual estamos, não avançará nem retrocederá, ficará ali, lado a lado. Mas para quem estiver parado na estrada, ambos estarão em movimento. E algum dos dois está errado? Não! E essa situação extremamente simples mostra que avaliar os rumos alheios requer nos colocarmos também em seus referenciais. Assim como na física, duas análises não serão iguais, caso sejam tomadas de dois pontos de vista diferentes. Respeitar os pontos de vista alheios não só nos ajuda a compreender as suas situações e contextos, como também nos dá verdadeiro embasamento para ajudar quando preciso, sem corrermos o risco de nos deixar levar por pré-conceitos e meros julgamentos pessoais. Assim como o universo, a condição humana pode ser avaliada a partir de infinitos referenciais. Essa é a beleza da nossa existência: aprender a conviver com a nossa própria diversidade, ao mesmo tempo em que precisamos ter um ponto de segurança, de confiança. E é isso que nos faz maiores, melhores e mais capazes de lidar com toda a problemática que é crescer ao longo de nossa existência. 
Assim, não podemos deixar de termos nossos referenciais. Sem eles seremos apenas viajantes sem rumo. Precisamos apenas ter a consciência de que ele não é o único possível no universo e, por mais que tudo pareça girar em nosso redor, também fazemos parte da dinâmica que move tudo, inclusive nós mesmos. 

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Fome de quê?



Fome de manhã
Fome de tarde
Fome de mim
Fome de ti

Fome de comida
Fome de crescer
Fome de experimentar
Fome de esquecer

Fome de deixar
Fome de seguir
Fome de perdoar
Fome de conseguir

Fome de acreditar
Fome de buscar saber
Fome de aceitar
Fome de não mais esconder

Fome de paz
Fome de não ter fome mais
Fome de escrever
Fome de compreender

Essa fome que me impele
Fome de tudo deste mundo e muito além
Fome de em ti um igual reconhecer
Fome de degustar esse sabor 
Sabor agridoce que é viver

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Casa




Levanta que tá na hora!
Vai perder o ônibus!
Pega a blusa de frio! Tá levando guarda-chuva?
Vai com Deus.
Seu pai já tá chegando. 
Sai, cachorro! Põe esse cachorro pra fora da casa!
E a aula, como foi?
Descansa um pouco, fica o dia inteiro em cima desses livros.
Vou ali na sua avó e já volto.
Mãe, telefone!
Alguém prende esse cachorro?
Nem acredito no que sua tia me contou.
Que filme besta.
Nossa, esse livro desse tamanho é a matéria?
Pra quando é o trabalho?
Amanhã tem que levantar cedo?
Vê se não demora na rua.
Me liga quando chegar lá.
A janta tá quase pronta.
Vou ali na padaria e já volto.
Olha o arroz pra mim.
Põe água pra ferver.
Faz café?
Mãe, compra pão!
Vê se não demora tomando banho!
Mas esse cachorro já ta dentro de casa de novo?
Não estuda até tarde senão vai dormir em cima dos cadernos.
Muda pra novela.
Ai, que novela chata.
Vou dormir.
Deus te abençoe.
Te amo.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Sísifos



Distinção. Um todo que se separa do todo. A ideia de que não se é igual a todo o resto, de ser diferente de tudo que há de errado lá fora. Progresso indefinido, missão bem-sucedida, lealdade que nunca caiu sucumbida. 
Porém a vida segue, e os desafios são muito mais complexos. Já não adiantam mais os velhos preceitos, e caídos no chão vão jazindo os princípios. Vai rachando o templo de baixo acima, pois uma falha em seu fundamento foi encontrada. O erro, ah o inevitável e desprezível erro. A vergonha, a humilhação. Poderia ter sido diferente. Poderia ter sido feito diferente.
Enquanto as consequências vão formando como um dominó no qual as peças caem umas sobre as outras, a poeira vai se levantando, e os sentidos vão ficando confusos. Já não há mais distinção entre o que há dentro e o que há fora, pois aquele espírito descobre que, assim como qualquer outro, se encontra na mesma condição: a condição humana. 
Uma dor aguda, que dói em toda a alma. É a dor da certeza da própria responsabilidade, criada pelos gritos da consciência em alerta máximo. O coração parece em pedaços, atingido por uma flecha envenenada com remorso e culpa, que têm o efeito iludibriante e paralisador pior do que a mais peçonhenta das serpentes.
Assim o tempo vai passando, enquanto nada mais parece ser como antes. Em um estado de vergonha, misto com quase que uma vontade de não mais ser, vai convencendo que não se é mais digno de existir. Não aquela vida, não com aquelas pessoas, não quebrando todas aquelas expectativas, tanto dos outros quanto de si mesmo. 
Cego pela dor, aquele ser já não consegue ver nada além da flecha que adentra mais e mais, empurrada por uma mão que julga invisível, embora sem perceber, seja ele mesmo que a empurra com as próprias mãos, em busca da punição que acha que merece. Não há mais argumentação, sequer som externo. Habitado sempre por um espírito que falava de amor e perdão, aquele corpo padece, incapaz de seguir adiante, perdoando a si mesmo. É um navio naufragado, porque seu orgulho ferido pelo não cumprimento do que dantes se prometera impediu que se permitisse continuar navegando.

domingo, 1 de junho de 2014

Inacabado



Tela sem pintura
Traços em preto e branco
Caderno com folhas vazias
Palavras que na mente jazem esquecidas

Sonho do qual se acorda na metade
Banho de água fria
De uma dura realidade
Tecido de lã com pontos sem nós
Que sozinhos se desfazem
Como um rio no oceano, ao chegar em sua foz

Encravado no meio do mar
Lá jaz o barco que antes estava a navegar
Pensamentos que se perdem sem se pronunciar
Cavalo selvagem ao qual
Já não é mais permitido cavalgar

Rabisco no final da frase
De uma palavra importante interrompida
Queda de luz no meio do filme
Desânimo em caminhar até onde ainda não estive

Livro pela metade guardado na estante
Caravana covarde
Que decide não seguir adiante
Braços cruzados a admirar
Casas belas que por ócio vêm a desmoronar

Hitória de avó interrompida
E cujo desfecho para sempre se perdeu
Mapa do tesouro queimado no fogo
Páginas de um diário que o tempo apodeceu

Como a partitura de uma música que não irá mais se finalizar
Notas soltas, sem fim,  que chegam ao ouvinte
E lhe permitem o resto apenas imaginar
Incômodo encravado no fundo do ser
Força atrativa para dois extremos
Que um inteiro só poderiam se fazer